Dentro e Fora das Favelas – Um breve relato sobre 9 meses de convívio com favelas cariocas!

Tempo de leitura: 7 minutos

Desde a França, sabemos que o Brasil é um país com desigualdades sociais gritantes, onde há dois mundos bastante distintos: o de dentro e o de fora da favela!

Porém, em geral, não temos noção alguma do quanto estes dois mundos não estão interligados.

Dois mundos

Depois de morar nove meses no Brasil, entendi que, aqui, existem dois mundos. Com certeza, a fronteira entre eles não é nem um pouco estável e bem definida. Existem numerosos indivíduos que se encontram entre estas duas esferas, alguns por vontade própria, outros por obrigação.

Porém, de maneira geral, a sociedade se divide em duas esferas que pensam ser completamente diferentes.

Primeiro, existe o lado dos mais ricos que lutam todos os dias em busca de uma vida melhor. Nesta esfera, os jovens estudam e trabalham muito para poder ter acesso a uma educação satisfatória. Durante a semana, os adultos trabalham arduamente para satisfazer às suas necessidades, para oferecer uma boa educação aos seus filhos, etc. Aos finais de semana, é comum irem ao shopping, lugar fechado, onde a maioria dos indivíduos pertence a classes sociais semelhantes. Esta esfera tem mais dinheiro do que a outra e, ao mesmo tempo, apresenta a pele mais branca. Existe uma cultura, normas e valores próprios a este mundo. Este universo e esta cultura são valorizados pela sociedade. Por exemplo, na escola e no mundo do trabalho.

O segundo mundo é próprio às favelas. Aí, estes indivíduos também lutam todos os dias, mas para sobreviver. As condições de vida são mais precárias. Faltam serviços básicos, tais como, saneamento e a passagem de caminhões do lixo. Os indivíduos que moram no morro tem de subir numerosas escadas todos os dias a fim de chegar aos seus destinos. Trabalham muito e ganham pouco. É um ambiente mais pobre, onde os indivíduos são mais negros ou morenos que no outro mundo. Existem também valores, normas e uma cultura própria. Por exemplo, aqui, o funk é um tipo de musica próprio a esta esfera. Este mundo é geralmente reduzido à violência e ao tráfico de drogas. O individuo que pertence a esta atmosfera será menos influente e menos valorizado.

Porém, entre estes dois mundos, podemos encontrar algumas semelhanças. Cada um, à sua maneira, luta para sobreviver à difícil vida encontrada no Brasil. Reparo que os indivíduos que não habitam nas favelas, pensam ser incompatíveis com os favelados. Os não-moradores acham que quanto mais longe estiverem dos favelados, melhor será para eles. Por exemplo, quantos indivíduos pensam que, para ser considero “culto” é preciso escutar funk e assumir que escutam este tipo de musica? Porém, ser culto não é ter um conhecimento vasto? Para criticar, não se faz necessário, antes de tudo, conhecer de perto o objeto da crítica?

 

foto-favela

Favela ou comunidade?

As favelas. Entendi aqui que é uma palavra que incomoda. Falar dela parece até perigoso. Alguns indivíduos preferem usar a palavra “comunidade” por ela parecer ser mais neutra. Uma comunidade, o que é? Na sociologia, é na comunidade onde os indivíduos compartilham de um modo de vida e de uma visão de mundo parecida. De qualquer forma, há muitos moradores das favelas que não concordam com este conceito e seguem chamando-a de “favela”. Porém, hoje, para os indivíduos que habitam fora dela, está na moda usar o termo “comunidade” no intuito de diminuir os preconceitos sobre estes grupos de indivíduos.

Neste artigo, falarei de “favela” porque não me sinto fora dela.

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Preconceitos desde a socialização primaria

Desde a socialização primária, ou seja, a infância, os brasileiros que moram fora das favelas integram o fato de que os “favelados” podem ser indivíduos perigosos. Se você encontra um homem, jovem, de cor negra e favelado, talvez, você vá pensar que ele apresenta relação com o tráfico de drogas. Neste caso, o individuo é vítima da “etiqueta social” do traficante. Howard S. Becker fala de “etiqueta social” para tratar dos discursos e das representações que ordenam o mundo social. Existem várias etiquetas sociais relativas aos favelados. Estes tipos de discursos e representações são particularmente transmitidos pelas mídias (rádio, internet e televisão). Nas mídias, na maioria dos casos, falar de favela é falar de ato violento. Esta seleção de informação amplia a representação social que já existe sobre este assunto e desenvolve determinados preconceitos.

Preconceitos como: A favela, o lugar da violência e do tráfico de drogas.

Minha experiência nas favelas

Eu fui nas favelas do Rio de Janeiro e do Salvador. É importante destacar que existem também numerosas desigualdades entre as favelas. O fato de que elas estejam na zona sul ou norte do Rio, no morro ou no asfalto, pacificada ou não, etc. Eu conheci principalmente as favelas da zona sul do Rio de Janeiro.

Antes, como muitos indivíduo, tinha medo de entrar por causa dos preconceitos que tinha. Hoje, não tenho mais medo. Falo da favela, como a minha segunda casa. A violência pode acontecer. Porém, para falar com sinceridade, eu vejo ela mais fora da favela que dentro. E, sobre o tráfico de drogas, sim, ele existe. Escondido, ou não. Porém, o traficante de drogas não vai ser violento com qualquer um. Ele tem o seu negócio e quer protegê-lo.

Hoje, após todo o contato que tive com as favelas, posso dizer, sem sombra de dúvidas, que a violência e o tráfico de drogas não são as primeiras imagens relevantes da favela. A imagem que prefiro atribuir é a comparação à vida. É um mundo onde os indivíduos têm vidas difíceis, porém, mesmo assim, sabem aproveitar dela e se divertir.

As normas sociais

No Rio de Janeiro, há muita probabilidade de ser assaltado. Na favela, não. Como eu falei antes, existem normas sociais próprias à favela. Não roubar é uma das regras. Um favelado que quer roubar, não vai roubar dentro da favela.

Também, o fato de respeitar a mulher é outra norma social. Em qualquer lugar, fora da favela, é considerado normal se os homens, de quaisquer idades, espiem o seu traseiro ou assoviem descaradamente para você. Na favela, ao momento de conquistar, os homens respeitam mais as mulheres. Antes de paquerar uma mulher, os homens favelados vão perguntar se esta mulher é casada, ou não. Surpreendente? A favela é um mundo surpreendente e enriquecedor.

Conclusão

Para terminar com um ponto engraçado, vou contar uma pequena historia.

Eu tinha de encontrar uma mulher que habitava em uma favela da zona sul do Rio de Janeiro e marcamos um encontro no metrô. Eu estava aguardando que seu metrô chegasse e ela já se encontrava a minha espera. Quando ela me viu, gritou: “Lééééééééa!” para que pudesse entrar com ela no metrô. Gritar no metrô não é uma norma social valorizada pelas categorias mais favorecidas do Brasil. Então, a maioria dos indivíduos no metro ficou surpresa pelo fato de que ela gritou e eles a olhavam de uma maneira que a rebaixava. Porém, o fato de que seja uma “francesa” que chegou surpreendeu ainda mais!  Você pode pensar: “Desculpa por ter pessoas assim, sem noções…” Você pode pensar que ficaria com vergonha. Porém, não. Ao contrario, estava orgulhosa de mostrar que uma mulher favelada pode ter amigos brancos e “chiques”!

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Espero que este possa ser o futuro do Brasil, um Brasil misturado.

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Sobre Léa Mougeolle

Me chamo Léa Mougeolle e sou uma socióloga francesa que adora escrever e estudar sobre o Brasil. Me graduei na universidade de Bordeaux e finalizei meu mestrado em Paris, na universidade La Sorbonne Nouvelle. É um prazer poder compartilhar conhecimento com você!

  • Willon Da Silva Rodrigues.

    Deste artigo posso dizer uma coisa:FANTÁSTICO.
    Muito bom mesmo e falo isso não só como um leitor deste trabalho,mas também como alguém que conheci muito bem o cenário ao qual esse texto está inserido.Parabéns mesmo.

  • Miguel Soares

    Na minha opinião ficou superficial e o conhecimento adquirido não foi o correto para expressar de forma realista esses
    mundos citados no artigo,no meu ver ouve um preconceito de que realmente as classes favorecidas tem mais importância
    para o Brasil,de um modo penso que sim porem, esses valores de diferença são desnecessários e levianos quando se trata de vida e historia humana,o povo te um estado
    tem que ter em mente um objetivo em comum para o bem estar de todos,mas isso e outra historia que merece ser discutida.

  • Hamilton

    Parabéns pelo artigo. Realmente concordo com a sua visão dos preconceitos que as pessoas tem com relação as favelas/comunidades. O problema é que para melhorarmos isso é necessário uma reforma na educação, saúde, segurança e melhores condições sociais para estas pessoas entrando com trabalhos sociais dentro destas comunidades. Toda a sociedade precisa participar “querer fazer”. Muitas destas pessoas são gente de bem, trabalhadoras e com um coração enorme. Queria eu que isso fosse uma norma, isto é, uma obrigação social com as classes menos favorecidas, onde pessoas que estivessem fora deste meio precisassem participar de trabalhos sociais ao menos 72 horas por ano. Isso traria resultados para ambos os lados, e para a pessoa que fez o trabalho para se colocar no lugar dessas pessoas e para as pessoas desta comunidade.